I picture your face
At the back of my eyes
A fire in the attic
A proof of the prize
(Incubus, "Anna Molly")
"Meu peito estava vazio.
Havia algum tempo que estava vazio, de fato. Havia algum tempo que eu deixara esta vida para pertencer a outra, que é eterna. Hoje me pergunto se fiz as escolhas certas e me pergunto ainda mais se eu realmente o desejei.
A água revolta movia-se sob meus pés. Aquele som parecia silenciar tudo em mim. O chão frio do navio era um eco de minha alma (que alma?) gélida e distante. Recusei-me a olhar para o horizonte. Nada havia ali, pelo menos não mais, que despertasse minha atenção. Jamais haveria ali outra vez uma razão para voltar ou olhar para trás. Ela se fora. Pela segunda vez.
E me odiava por não ter sido eu a tirá-la a vida desta vez, e odiava a morte por tê-la dado outra existência longe de mim, uma que eu não conheceria. Por que seres como eu não conhecerão jamais outra vida que não seja a maldição do sangue, da sede, do vazio eterno. Apenas uma vez surge uma outra solidão tão vasta quanto a sua e quando ela se vai, sua solidão solidifica-se. Eterniza-se.
O mar me afastava do mundo inteiro enquanto o navio seguia seu curso, silencioso. Eu havia tentado com todas as forças atravessar o oceano por ela, rápido o suficiente, em tempo de salvá-la. Mas do que eu poderia salvá-la? Seu rosto fora cravado em minha mente, e eu amaldiçoei o momento em que a vi em chamas indefesa sob os olhares sádicos de todos eles. Eles mancharam todas as lembranças que tinha do rosto de Anna Molly perfeito como a mais fina porcelana. Agora, quando sua face visitava meus sonhos, serena e delicada, logo era substituída por algo monstruoso que já não era mais seu rosto: era a face da dor, da angústia e da morte.
"Anna Molly", por Andreea |
- Anna Molly... Anna Molly... Anna Molly... - ecoava em meus pensamentos o nome dela, minha Anna Molly, minha rosa eterna de lábios em pétalas e olhos de orvalho. - O que fizeram a você, minha pequena rosa? O que fizeram a mim?
O oceano escuro como os cabelos de Anna Molly continuava sussurrante e a cada novo sussurro, entreouvia-se seu nome, indo quebrar-se com as ondas. Minha Anna Molly...
E em meio às profundezas do mar eu vi uma luz. Fraca, a princípio, mas crescia e ia aumentando conforme aproximava meu rosto da água. Com a luz, vinha um som, uma voz, a voz que todas as noites chamava meu nome, que produzia o mais belo riso, que produzira o mais horrível grito de dor: era minha Anna Molly vindo para sua visita das madrugadas. Meus lábios se curvaram em um sorriso que rasgava meu peito já lacerado. Eu queria tocá-la, mas era apenas névoa. Perdia-se ao mínimo tremeluzir da luz.
- Eu queria poder senti-la, minha pequena rosa... - pensei e ela ouvira. Assentira com a cabeça. Os cabelos eram uma massa revolta ao redor da face de porcelana, os olhos brilhavam como a lua cheia daquela noite e seu corpo esculpido era quase todo a seda do vestido que usava na noite amaldiçoada em que partira. Era branco, e eu lembrava como rapidamente tornara-se negro pelas chamas que a consumiam.
Uma criatura da noite como eu não devia temer a escuridão. Mas sempre que Anna Molly me visitava, eu temia desesperadamente que sua luz se dissipasse e me deixasse. Assim que ela voltasse a ser névoa na noite, eu estaria condenado à minha treva eterna.
Mas hoje eu segurei-me a cada nesga de luz que irradiava dela, por que hoje aquele navio me levava de volta ao lugar que guardava as cinzas de minha pequena rosa e hoje eu as vingaria. Anna Molly viu em minha mente meus planos de vingança e sorriu docemente, como fazia quando eu lhe dizia que a amava. E era por aquele mesmo amor que eu não deixaria sequer uma gota de sangue correr pelas veias deles. Não deixaria o mínimo sopro de vida a que pudessem se segurar. Suas vidas seriam minhas e nada me daria mais satisfação do que sentir seu fluido vital servindo meu corpo. Eles não mereciam viver.
Anna Molly pairou sobre as ondas e inclinou a cabeça, os cabelos espalhando-se a seu redor. De repente, tudo ao seu redor tornou-se fogo vivo e brilhante e o rosto que eu tanto amava contorcia-se em meio às labaredas de névoa. Meus dedos estenderam-se à minha frente, meus olhos ainda não haviam se acostumado com aquela lembrança. Eu via minha Anna Molly incinerar-se todas as madrugadas e assim partir na neblina, a luz partindo com ela, minha existência partindo com ela.
Tudo voltou a ser treva, mas hoje haveria algumas luzes acesas naquele vilarejo fétido e imundo. Meus olhos ergueram-se para o horizonte pela primeira vez em muitos anos e naquela noite o sangue deles lavaria as cinzas de minha Anna Molly.
E eu esperaria sua visita outra vez, para sempre."
Até a próxima!
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